O sociólogo Zander Navarro publicou no dia 30 de outubro de 2013, um artigo no jornal "Estado de São Paulo", intitulado "Fadas, duendes e agricultura". O artigo revoltou as comunidades agroecológicas e da agricultura familiar. No texto, o autor fala que o Governo Federal mergulhou no ridículo ao lançar o Programa Brasil Agroecológico, além disso, o autor faz críticas severas aos três ramos que englobam a agroecologia: ciência, prática e movimento. O autor também argumenta sobre o modelo de sustentabilidade de produção e sobre o potencial da agroecologia para alimentar o mundo. O artigo gerou polêmica e debate entre os grupos de agroecologia, estudantes, pesquisadores e professores. Leia abaixo o artigo na íntegra:
Fadas, duendes e agricultura
Zander Navarro
Sociólogo e professor aposentado da UFRGS
Estado de São
Paulo
Poderia ser o
dia da mentira, mas esse já consta no calendário. Melhor designá-lo como o dia
do assombro. Ao lançar em 17 de outubro, com fanfarra, o Plano Nacional de
Agroecologia e Agricultura Orgânica, o governo federal mergulha no ridículo e,
de quebra, desmoraliza ainda mais o que restou da antiga autointitulada
esquerda agrária. É mais uma criativa contribuição brasileira para o anedotário
internacional, pois é histriônica a sugestão de a agroecologia ser o caminho
tecnológico para assegurar tanto a produção como a sustentabilidade das
atividades agropecuárias.
Na exiguidade
deste espaço destaco, sobretudo, quatro aspectos. O primeiro é apontar
incisivamente que agroecologia e expressões como "práticas
agroecológicas", de fato, não existem. Para quem duvidar, fica o repto:
aponte um caso concreto, um único que seja. Não se trata de um novo modelo
tecnológico e organizativo factível na agricultura. Nem é uma ciência emergente
e menos ainda um movimento social. Dessa forma, causa pasmo a pirotecnia operada
a partir de algo que é ficcional.
Em alguns poucos
países, agroecologia aponta apenas esforços científicos multidisciplinares
destinados a ecologizar a agricultura. Mas não é ciência em si mesma.
Certamente a Presidência foi induzida a
erro por assessores movidos por um só objetivo: combater a moderna agricultura
brasileira e, por conseguinte, confrontar politicamente o capitalismo como
ordem social. Mas por que não fazem esse combate à luz do dia, como seria
natural numa ordem democrática? É provável que a presidente nem tenha percebido
a manipulação de setores radicalizados, descomprometidos com a pobreza rural, o
ambiente e a prosperidade do País. São movidos somente por objetivos políticos,
mas sem nenhum verniz democrático, preferindo o jogo sujo das sombras.
O plano
pontifica sobre algo que é falso e, por isso mesmo, o documento não define o
que é agroecologia em nenhum momento. Nem poderia, pois não passa de uma
palavra sem conteúdo que pretende englobar os modelos tecnológicos chamados
"alternativos" - e seriam alternativos ao eficiente padrão moderno
que organiza a agricultura em todo o mundo. Escassamente adotados, esses
modelos são muito diferenciados entre si e nenhuma palavra poderá abranger
todos eles, sendo logicamente impossível um termo que inclua todas as facetas
dos formatos já propostos.
Em síntese,
temos um plano oficial ancorado em palavra cujo significado ninguém sabe. E
acreditem: até o CNPq já lançou edital, apoiado por cinco ministérios, para
fomentar projetos, cursos e outras atividades centrados na misteriosa
agroecologia. Mais ainda, recente chamada pública do Ministério do
Desenvolvimento Agrário oferece espantosos R$ 98,3 milhões para "ampliar
processos de agroecologia existentes". Impossível algo mais absurdo.
Outro aspecto
importante é que os militantes que organizaram esse assalto à razão incluíram o
termo de contrabando nas costas da "agricultura orgânica", como se
fossem parentes próximos. Outra falsidade. A chamada agricultura orgânica
ostenta uma longa história, normas próprias, desenvolve mecanismos de
certificação, é até legalizada e lucrativa. Seus praticantes não são
anticapitalistas, como o são os que defendem a agroecologia. É preciso separar
o joio do trigo, mas o Planalto, estranhamente, preferiu deixar-se enquadrar
por ideólogos.
Um terceiro
aspecto a realçar é a incapacidade de nossos governantes desenvolverem uma
honesta argumentação sobre tais iniciativas. Se o fizessem, seria possível
iluminar esta noite escura criada e demonstrar, com números, fatos e estatísticas,
que a moderna agricultura brasileira tem observado trajetória espetacular em
termos de produção e produtividade e, como resultado, seu desempenho ao longo
do tempo tem poupado recursos naturais em vastas proporções. Sucintamente, o
desempenho produtivo da agricultura brasileira tem produzido continuamente a
sustentabilidade, deixando assim a pergunta ainda sem resposta: por que não
existe este debate?
Finalmente, há o
aspecto mais relevante a ser citado, ignorado pela Presidência e pelos que fizeram
a festa naquele dia. Modelos de ecologização da agricultura, qualquer um deles,
exigem o desenvolvimento de sistemas de produção agrícola complexos, combinando
diversas atividades de produção vegetal e animal na propriedade. Considerações
econômicas à parte, sensatos fatores agronômicos e ecológicos sustentam a
tendência, mas embutem duas consequências práticas: a gestão produtiva do
estabelecimento rural torna-se extremamente desafiadora e requer maior uso da
força de trabalho. Por essas razões, na prática não são modelos concretizáveis.
As famílias rurais desejam o melhor da tecnologia, mas uma crescente
complexidade de manejo é para raros agricultores. A lógica da produção moderna
requer certa uniformidade, facilitando a administração. E quanto ao fator
trabalho, os fatos são preocupantes, pois a oferta de mão de obra está caindo
em todas as regiões rurais e seu preço, subindo. Por isso, modelos ide
agricultura ecológica podem ter o seu lugar, mas jamais deixarão de ser nichos
de mercado. Sua generalização não é viável.
Tudo isso é
inacreditável e nos deixa diante de um dilema: podemos assumir que o País e seu
povo são mesmo parte de uma comedia permanente e, assim, deveríamos
"vestir" a alegria inconsequente dos adolescentes. Ou,
contrariamente, somos tomados pela melancolia, pois seríamos um povo sujeito à
condenação eterna e os genes da ignorância fariam parte de nossa estrutura de
funcionamento desde sempre.
Mais detalhes em
Agroecologia: as coisas em seu lugar. A Agronomia brasileira visita a terra dos
duendes,publicado na revista Colóquio, volume 10, nº 1, 2013, Faeeat, Rio
Grande do Sul.